Crise global reacende debate sobre estoques de alimentos

No último fim de semana, as cenas de uma multidão invadindo a residência do presidente do Sri Lanka para protestar contra a disparada da inflação, a crise política e, também, contra o aumento da fome no país, foi um exemplo prático de que a falta de comida pode derrubar governos.

A insegurança alimentar cresceu no mundo desde o início da pandemia da Covid-19 e se agravou com a guerra na Ucrânia, o que amplificou as discussões em todo o mundo sobre a necessidade de os países manterem estoques públicos de alimentos para enfrentar choques agudos de oferta, como os que ocorrem em pandemias e guerras (ou ambos).

As dúvidas persistem, mas as respostas para o Sri Lanka não são necessariamente as mesmas para Estados Unidos, China, Índia ou Brasil.

Grandes produtores e exportadores de alimentos que têm economia de mercado aberta, como EUA e alguns países europeus, mantêm pouca ou mesmo nenhuma reserva estratégica de produtos agrícolas. Essa é também a estratégia brasileira, que deve se manter, a despeito da crise global de oferta de alimentos (e do aumento da fome no país).

“Para assegurar a oferta, o segredo é manter fluxo e previsibilidade”, disse Sérgio De Zen, diretor de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Para o governo, a estocagem de alimentos é cara, ultrapassada e ineficaz. A estatal aposta no uso de inteligência para monitorar os fluxos de produção e consumo e, com isso, ajudar a elaborar cenários.

Formação de estoques públicos

De Zen afirmou que no Brasil, a formação de estoques públicos nunca teve como objetivo a segurança alimentar da população, mas sim a garantia de preço e renda aos produtores e de oferta a programas sociais. Segundo ele, a falta de previsibilidade de dados é que deixa espaço para a especulação e o aumento das cotações.

Como o País tem produção diversificada e oferta abundante durante todo o ano, não há risco de desabastecimento, argumenta Benedito Rosa, ex-presidente da Conab e ex-secretário do Ministério da Agricultura.

Para ele, a atuação do governo tem de ser pontual, como ocorre hoje na oferta de milho a pequenos criadores de animais em momento de escassez ou forte aumento de preços do grão. “O Brasil já não adota o princípio de formação de estoques reguladores há mais de 20 anos”, disse, “em governos de direita e de esquerda”.

Diferença

A realidade é diferente nos dois países mais populosos do mundo, China e Índia. “A principal diferença entre Brasil, Índia e China é que o Brasil é um exportador de alimentos nato. Questões climáticas ou crises econômicas momentâneas não colocam em perigo o abastecimento dos brasileiros, porque sempre há comida de sobra que se exporta”, estimou Martin Piñeiro, ex-diretor-geral do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e ex-subsecretário de Agricultura da Argentina.

Medida estratégica

Segundo ele, a formação de estoques é uma medida estratégica para nações mais populosas e que não são autossuficientes na produção de alimentos.

“Quando se tem uma seca ou outro problema climático ou macroeconômico que diminui a produção local na Índia ou na China, surge um problema político substantivo, de risco de a fome ter escala nacional”, disse Piñeiro, que também é diretor do Grupo CEO e consultor do Grupo de Países Productores del Sur (GPS), formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Para chineses e indianos, em cenários de crise, a estabilidade na oferta passa a depender ainda mais das compras de alimentos no exterior. Mas, como se vê no choque de oferta causado pela guerra, que interrompeu as exportações agrícolas da Ucrânia, outros países também precisaram aumentar suas importações, o que elevou os preços dos alimentos no mundo.

Reservas

Nações menores, como Costa Rica, Guatemala, El Salvador e Panamá, trabalham em melhorias de seus programas de reservas estratégicas. “Dessa forma, elas suprem a demanda interna e evitam aumentos excessivos dos preços de vários produtos no mercado”, disse José Torres Gallardo, especialista regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para Mercados.

Interesses

O equilíbrio de interesses, no entanto, depende mais do que apenas do interesse nacional. A Índia, por exemplo, discute na Organização Mundial do Comércio (OMC) a possibilidade de exportar estoques públicos de açúcar produzido com subsídio. Outros exportadores, como o Brasil, são contra a medida, que poderia derrubar os preços da commodity.

“Para mim, a solução não é proibir estoques públicos em países importadores, mas vetar subsídios diretos às exportações”, indicou Piñeiro.

Reação

Com os problemas na oferta, a FAO calcula que a relação entre estoques e uso de cereais no mundo, de 30,70% em 2021/22, cairá para 29,80% em 2022/23. Esse aperto fez crescer o protecionismo.

Na última quarta-feira, em comunicado conjunto, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, OMC, Programa Mundial de Alimentos (WFP) e FAO defenderam a redução de barreiras comerciais como instrumento de combate à fome. Cerca de 25 países reagiram ao aumento dos preços, adotando restrições às exportações que afetam mais de 8% do comércio global de itens alimentícios.

Fonte: Valor
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