No polo de Piracicaba, a inovação não para

A greve dos caminhoneiros avançava para o quarto dia na quinta-feira passada, anunciando os primeiros transtornos em Piracicaba na busca por combustível, mas Luiz Pereira falava sobre um assunto, para ele, muito maior. A decisão de abandonar aos 30 anos de idade o “emprego paralelo” de consultor em Brasília para a FAO (a agência da ONU para Agricultura e Alimentação) e desenvolver tecnologias digitais que conseguissem dar mais eficiência às operações de usinas sucroalcooleiras do país.

“Foi uma boa troca?”, ainda lhe perguntam. Pereira tornou-se gestor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da startup de inteligência agrícola IDGeo e já tem em seu portfólio de clientes usinas da Biosev e do Grupo São Martinho, duas grandes do segmento.

“Estar no Vale do Piracicaba foi um cartão de visitas para nós. Muitos aceitaram testar os nossos produtos por termos o respaldo da Esalq. É o nosso selo de origem”, disse Pereira, quatro anos depois.

A IDGeo foi uma ideia de empreendedores que encontrou no município paulista a conjunção perfeita de fatores para a inovação: rede de pesquisa, ambiente acadêmico, uma incubadora que aceitasse testar e validar o projeto, espaços para “coworking” de startups com enfoque agrícola e a existência de compradores no entorno.

Lançada há dois anos com o intuito de ser a chancela brasileira de qualidade de produto e inovação em agricultura, o Agtech Valley, ou Vale do Piracicaba, foi uma iniciativa que pegou. O que se vê hoje é a dispersão desse movimento pela cidade, a formação do “ecossistema”, como se diz no jargão do empreendedorismo.

Dados preliminares do 2º Censo Aghtech Startups Brasil, uma co-realização da Esalq/USP e do AgTechGarage, mostram que o país tem ao menos 144 agtechs, as startups focadas em soluções para o campo. Boa parte delas surgiu em Piracicaba, ou migraram para cá. Em 2016, no 1º Censo, eram 76. Não é pouco para um país onde a inovação não é prioridade pública, nem para um setor com uma linha do tempo inferior a cinco anos.

A expectativa é que esse número ultrapasse a faixa de 200 quando o levantamento for concluído, em 15 de junho. Esta edição do censo teve o apoio da Apex, que promove produtos e serviços brasileiros no exterior, e da CNA, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária. Cada um com o seu motivo, todos tentam compreender o estágio de maturidade e a relevância das agtechs do país.

“Quando olhamos os dados preliminares do Censo, vemos que 60% das 144 startups têm algum vínculo com a academia Aqui é o núcleo da academia. Aqui é o núcleo da inteligência. Mas é em Mato Grosso onde a inovação vai acontecer”, afirma Mateus Mondin, professor da ESALQ e um dos mentores do Vale do Piracicaba.

O ecossistema se formou e se espraiou aleatoriamente por “Pira”, mexendo gradativamente na paisagem da cidade. Com isso, esse município de forte tradição agrícola tem ganhado uma roupagem mais próxima dos dias atuais. Novos hubs (núcleos) de inovação e espaços para “coworking” pipocam com suas paredes de tijolo aparente, pufes coloridos e referências de design industrial. Investidores se aproximam. Grandes companhias, até então meras observadoras do processo, optaram por ser parte dele, seja com apoio ou aportes diretos nas empresas novatas.

“Não é um movimento de curto prazo para que possamos medir o impacto na cidade como um todo. Startups são formadas por duas, quatro pessoas. Mas precisamos colocar isso numa perspectiva maior: qual terá sido o impacto desse movimento de inovação daqui a dez anos?”, disse Mondin.

Fazer parte desse ecossistema tem trazido gradativamente uma gama de novos atores a Piracicaba, de empreendedores de outras localidades a ex-esalquianos. Eles chegam à cidade pelo simples desejo de fazer parte do ecossistema, de estar onde as coisas estão acontecendo. Se o agronegócio repentinamente virou “sexy” aos olhos de muitos jovens, Piracicaba é a síntese dessa nova sensualidade que pretende revolucionar a maneira como se faz agricultura tropical.

“Não dá pra ficar fora daqui”, disse o gaúcho Maikon Schiessl, da Aegro, sobre a decisão de inaugurar em setembro passado uma filial do escritório de Porto Alegre em Piracicaba. Criada em 2014 por quatro cientistas da computação e um engenheiro agrônomo, a Aegro criou tecnologias digitais que permitem a checagem da produtividade da lavoura talhão por talhão. Segundo ele, a empresa conta com 1 milhão de hectares mapeados, 10 mil usuários móveis e atua em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Colômbia, Paraguai e, a partir de agora, no mercado africano.

Schiessl é o “growth hacker” da Aegro. Ou seja, é o responsável pela estratégia de tráfego e aquisição da empresa que permite a sua expansão. Desde 2016, ele diz, a Aegro recebeu aportes de R$ 7 milhões em três rodadas de investimento. Para 2018, a empresa espera finalmente atingir seu primeiro R$ 1 milhão em receita.

A Aegro está localizada na Usina de Inovação Monte Alegre, uma antiga fazenda de cana-de açúcar de 400 mil hectares a dois quilômetros da Esalq. As ruínas do engenho ganham luzes coloridas à noite e iluminam a “Fuckup Nights Piracicaba”, festa global do empreendedorismo do fracasso – a balada em que erros irreversíveis nos negócios são confessados em público como forma de aprendizado.

Parte do espaço, agora renovado, abriga restaurantes, “coworkings”, salas de ventos, de reuniões e, claro, startups. Junto à Aegro estão a SintecSys (empresa de Jundiaí de monitoramento de incêndios), a Horus (catarinense que fabrica drones) e a SP Ventures, uma das principais casas de venture capital para o agro, tendo investido R$ 80 milhões em 20 agtechs.

Do outro lado da cidade, a Raízen avança com o seu Pulse, um andar inteiro dedicado à inovação, estrategicamente localizado ao lado de sua sede. “O pessoal não estava olhando para cana, só grãos. Agora tem fila de startup querendo ver oportunidade no nosso setor”, disse Fábio Mota, vice-presidente do Centro de Serviços Compartilhados da Raízen e líder do Pulse.

Após mapear 400 projetos, 12 foram escolhidos, seja para serem acelerados ou associados (caso de empresas em estágio de maturidade mais avançada). Nem todas atendem “dores” sucroalcooleiras, necessariamente. Uma das associadas é a @Tec, voltada à pecuária. “Uma solução interessante pode surgir deste ambiente e ser adaptada à cana. O que está acontecendo é que estamos aprendendo o sentido genuíno de colaboração, e isso é o que nos interessa”, disse Mota.

Nomes consagrados do mercado, como Raízen e Cosan, misturam-se agora a (ainda) desconhecidos do mundo digital. Brazil Beef Quality, Delta CO2, YouAgro, Pragas.com, Spot Ethanol, InCeres e CowMed são exemplos de startups que estão tentando promover a “disruptura” no campo: do grão ao gado, tudo está sendo percorrido com atenção.

Em 2017, o Sebrae juntou-se ao movimento com mentoria e validação de projetos de 10 startups em Piracicaba, no âmbito do “Startup Agro Digital Piracicaba”.

A troca de conhecimento e aproximação de empreendedor e indústria é um dos objetivos do AgTechGarage, encabeçado por José Tomé (outro mentor do Vale do Piracicaba) e apoiado por empresas como a John Deere. “Queremos trazer uma densidade interessante para o diálogo – produtor, indústria, consultor, investidor, startup”. O Garage desempenha papel importante de networking na cidade. Uma das formas de conectar que propõe são os circuitos de um dia em que startups visitam empresas e são apresentadas a CEOs.

Segundo Tomé, em novembro passado 12 startups foram levadas à sede em Cravinhos (SP) da Ourofino, de saúde animal, para a interação – quatro saíram de lá com negócios firmados com a empresa.

“O melhor do ecossistema é que ele consegue conectar. Há três anos, os atores não se falavam. A Esalq só foi assinar o primeiro convênio conosco agora”, afirma Flávio Castellari, diretor-executivo do Parque Tecnológico de Piracicaba, hoje com 15 empresas incubadas e ligadas ao setor sucroalcooleiro.

 

Fonte: Valor

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